sexta-feira, 6 de fevereiro de 2009


Avó
Já partiste há tantos anos, mas a saudade faz-me rever-te todos os dias. Quantas vezes eu sinto que estás a meu lado: fisicamente, sei que não é possível; espiritualmente, tudo é possível.
Sei que os longos anos que viveste foram vividos com alegrias, amor, lutas, muitas lutas, e também com sofrimento.
Os meus primeiros 9 anos vivi-os na tua companhia, na pequena aldeia que se chama Casais Romeiros e, para mim, foi um tempo de aprendizagens em que, pouco a pouco, fui crescendo tendo como modelo uma Mulher de fibra, rija e determinada.
Nasceste a 24 de Junho de 1890, e partiste a 30 de Abril de 1983, e nunca te disse o quão importante foste para mim.
Avó, minha amiga, muito querida, heroína da vida simples, criaste 7 filhos, sobrevivendo do suor do teu rosto, cavando a terra, plantando sementes, que meses depois se transformavam em alimento.
Viste partir deste mundo o teu marido e quatro filhos, nunca entraste no cemitério para ver descer à campa os teus entes queridos. Dizias: “Só lá entro quando for a sepultar”, e assim foi.
No reino dos vivos ajudavas os vizinhos, os familiares, os desconhecidos e até os animais domésticos. Quando doentes, fazias o possível e o impossível para os curares. Eras, de estatura, uma Mulher pequena, mas com uma força descomunal que, um dia, agarraste em peso um homenzarrão, que por sinal era teu genro, e que constantemente maltratava a mulher. Deste-lhe uma tareia e avisaste-o: “Nunca mais bata na minha filha, ou fica a saber que a próxima tareia dou-lha na taberna à frente dos seus companheiros de bebedeira”. Remédio santo, ele nunca mais mal tratou a tua filha. O homenzarrão durou pouco, bebia muito e mais ou menos um ano depois, deixou este mundo.
Vivíamos juntas e, para além da nossa relação avó-neta, eramos companheiras de aventura. Calcorreámos montes e vales, caminhamos junto a rios e ribeiros. Sucediam-se as estações do ano, passeámos à chuva, no Inverno, ouvindo o vento a assobiar-nos nos ouvidos, batendo os dentes e tiritando. E, no regresso a casa, que bem que nos sabia uma sopa quente, acompanhada de pão e chá. Era nesta estação que a minha mãe me vinha visitar, pois estava em Lisboa, e era na altura do Natal que vinha passar uns dias connosco.
Na Primavera, a minha estação preferida, nós procurávamos e colhíamos plantas medicinais para vender às ervanárias, como forma de aumentar os rendimentos e, assim, termos mais um pouco de dinheiro. Foi assim que me ensinaste o nome de muitas plantas e quais as suas aplicações medicinais.
No Verão, tempo de férias da escola, apanhávamos lenha para os dias frios. Era nesta estação que íamos muitas vezes até às margens dos rios e ribeiros apanhar junca (planta), e era também nesta altura que íamos aos montes apanhar feno. Juntamente com a junca, eram a matéria prima com que tu fazias cestos, teigas e açafates para uso doméstico.
No Outono, as nossas tarefas giravam à volta da apanha da azeitona, das vindimas e de armazenar a comida necessária para o Inverno (figos secos, nozes, azeitonas, passas de uva, etc.).
Outra das tuas preocupações era cultivar a terra e cuidar dos animais, fontes de alimentos para a nossa sobrevivência. Tínhamos galinhas, que nos davam ovos, os quais usávamos nas refeições e que serviam para fazermos as broas na altura do Natal, as filhozes, os cuscurões e as azevias.
De cada estação do ano, guardo memórias de ti, dos teus procedimentos, dos teus muitos afazeres, de gestos e rotinas que ainda hoje perduram nas minhas recordações.
Estiveste sempre presente a meu lado. Aliás, ajudaste no meu nascimento e foram os teus braços que me seguraram pela primeira vez quando cheguei a este mundo. Quando a tua filha, minha mãe, disse que me ia levar para Lisboa, agarraste na trouxa e vieste viver connosco. Foram uns tempos difíceis, em que houve altos e baixos, com alguns conflitos à mistura.
O nosso mundo, que era composto apenas por duas pessoas, eu e tu, de repente cresceu para cinco (tu, eu, a minha mãe, o meu padrasto e o meu irmão), e onde não havia muita união. Não foi fácil a convivência, os feitios chocavam-se muito. Os anos foram passando, tu foste ficando mais velhinha e mais curvada. A tua personalidade sempre foi muito forte, não facilitavas nada e nem sempre era fácil o relacionamento contigo. Divergências, choque de feitios, tudo foi sendo superado. Eu cresci, de criança passei a adolescente, mais tarde entrei na idade adulta; assumi responsabilidades, casei e formei família, e tu continuaste a viver com a minha mãe. Quando era possível, lá estava eu perto de ti, ouvindo as tuas queixas e dando-te palavras de conforto, e estava sempre disponível para escutar os teus longos desabafos.
Até que um dia foste, pela primeira vez, de urgência ao hospital e, pela primeira vez, fizeste análises ao sangue. Apesar dos teus queixumes e das tuas supostas doenças, muito poucas vezes tinhas ido a um médico. Tinhas a linda idade de 93 anos e, até ao dia anterior à tua hospitalização, fazias tudo e mais alguma coisa: cosias, fazias tapetes, cozinhavas e fazias longas caminhadas, agarrada a uma caninha, e estavas na posse de todas as tuas faculdades. Não gostaste de estar no hospital, a estadia foi curta e só lá estiveste um dia, e partiste rumo à eternidade, e durante muito tempo eu senti-me mal.
Avó querida, amiga, minha companheira de aventuras, hoje quero dizer-te o quanto foste e ainda és importante para mim. Desculpa porque nunca te disse o quanto te amava e ainda te amo. De vez em quando, sonho contigo, parece que esperas pela noite para vires ter comigo, para me dares força e ânimo nas minhas dificuldades. Deve ser porque eu, às vezes, peço a tua ajuda, e tu arranjas sempre uma maneira de me prestar auxílio.
Hoje sou eu avó e, claro, adoro o meu neto, e faço muita questão de contar-lhe histórias de outros tempos e de lhe transmitir as vivências da minha geração.
Avó, vou dizer-te um segredo: foi preciso passarem tantos anos para, sem amargura, mas ainda com mágoa e muita saudade, desabafar no papel tudo o que não consegui dizer-te cara a cara. Tenho 50 anos e, um dia, quando partir (que seja daqui a muitos anos), quero que, ao menos, um dos meus netos me recorde com tanto amor e carinho como aquele que eu tenho por ti.

2 comentários:

Sara disse...

Luzinha brilhante... e radiante, de luz que ofusca com bondade e bom senso e isto é tão pouco para te descrever... Já te tinha dito antes que este texto é tão comovente, que é impossível lê-lo sem ficarmos com os olhos embaciados. Este curso, só pelo facto de te conhecer, já valeu a pena! És uma pessoa rara e valiosa, qual diamante!
Gosto muito de ti, amiga!

Luz =D disse...

Boa, mas só hoje é que vim ao blog e só agora é que vi a tua mensagem.
OBIGADA grande e linda amiga SARITA Bjs